31 de outubro de 2012

20 de outubro de 2012

Os Ancestrais e o Outro Mundo



“Bem cedo na manhã do terceiro dia depois daquilo eles viram outra ilha, com uma paliçada de bronze no centro que dividia a ilha em duas, e viram grandes rebanhos de ovelhas por lá, um de ovelhas negras de um lado da cerca e outro de ovelhas brancas do outro lado. E viram um homem grande separando os rebanhos. Quando ele lançava uma ovelha branca sobre a cerca para o lado das ovelhas negras ela se tornava negra no ato. Quando ele lançava uma ovelha negra para o outro lado, ela logo se tornava branca.” (A Viagem de Mael Duin, tradução de Endovelicon).

A proximidade com o dia de finados no calendário civil e com o festival céltico Samhain[1], nos faz pensar inevitavelmente sobre os ancestrais, nossos antepassados, e para onde vão depois que morrem nessa vida. Bem, não tenho como responder a essa dúvida com tanta certeza, pois todos nós quando renascemos nesse mundo, mergulhamos nas águas sagradas do Caldeirão de Bran e saímos mudos, sem saber ou ter como dizer o que vimos e vivemos no “Outro Mundo”[2]. Porém, os celtas nos legaram alguns conhecimentos sobre a vida, a morte e o renascimento, e sobre nossa ligação com os antepassados. É um pouco sobre isso que conversaremos nesse encontro.

Para os Celtas antigos (e atuais), o Mar e as águas eram (são) os portais para Outros Mundos, assim como a profundidade da terra (cavernas, colinas “ocas”) e os lugares altos (montanhas, colinas). Contudo, o Mar é o local de excelência para a comunicação com Outros Mundos. No Mar do Oeste (onde o sol se põe, “morre”) é onde se acredita ser o local em que Deuses, seres feéricos e também as almas dos entes queridos habitam, e é composto por diversas ilhas (maravilhosas, paradisíacas, mas também assustadoras, perigosas). Seu guardião é Manannán Mac Lir, o bondoso e sábio rei das ondas, que guia as almas, e os homens corajosos[3], além do Mar. Além dele há também a Dama do Ramo de Prata, que na Imramm de Bran Mac Febal aparece como uma senhora bela e radiante portando um ramo prateado com maçãs douradas, e instiga Bran a viajar pelo mar e conhecer as Ilhas Abençoadas.

Nem todas as almas de homens e mulheres são dignas o bastante para descansarem nas ilhas bem-aventuradas. Algumas almas ficam perdidas entre os mundos ou se recusam a ir. Outras, por alguma lógica do Mistério, renascem tão logo morrem, e podem assumir um novo corpo humano, animal, vegetal, mineral ou outra forma de vida, nesse mundo que conhecemos ou em outro[4].
O trecho no início desse texto aborda simbolicamente a ideia de que a vida contém a semente da morte, e a morte carrega a promessa da vida. Quando nascemos nesse mundo, morremos no Outro. E quando morremos aqui, renascemos lá. A morte, definitiva, não existe de fato. A vida é um eterno ciclo de ir e vir, como as fases da lua, as estações do ano, o ritmo das marés, o percurso do sol, as ondas do mar... A eternidade existe e se manifesta nas transformações (trans = além, transcender; formações = formas, estruturas). A cobra troca de pele. A águia muda de penas e arranca as unhas velhas. Ambas se renovam, e renascem em cada mudança, em cada morte.

Nossos antepassados e pessoas queridas que fizeram a travessia pelo Mar do Oeste continuam vivas, e estão conectadas conosco pelo misterioso entrelaçar da Grande Teia. Os antigos estão em nós, seus descendentes, e nós estaremos em nossos filhos, sobrinhos e netos um dia. Manter acesa a memória e o amor pelos antepassados é fortalecer os laços com nosso passado e futuro, é guiar nossas vidas em honra, tradição e humildade[5], tal como uma chama na noite mais escura.


“Samhain, Samhain,
A noite cobre o céu.
Invoco os Ancestrais,
Vinde a nós, passai o véu!

Bem fino está o véu,
Eu vou cruzar o mar
Rumo à Porta do Tempo,
E aos que partiram vou cantar.

Samhain, Samhain,
Vimos aqui louvar.
E honrar nossas raízes
Enquanto a Roda girar.
Samhain, Samhain,
A Roda vai girar.
Aqueles que partiram
Neste canto vou lembrar!”

(Cântico de Samhain. Música de Lisa Thiel. Letra adaptada por Nemeton Lusitano).


(Texto escrito por Darona Ní Brighid e utilizado na roda de conversa de Druidismo em 20/10/2012, em Belém-PA).


(Foto do Encontro/Roda de Conversa sobre Druidismo realizado pelo Nemeton Samaúma em 20/10/12)




[1] Festival sagrado para celebrar o fim e início de um novo ano/ciclo e honrar os antepassados. Realizado entre os dias 29 de outubro e 02 de novembro.
[2] No Mabinogion (compêndio de mitos galeses), na batalha pelo resgate de Branwen, muitos guerreiros são mortos ou fatalmente feridos, Bran então mergulha seus guerreiros em seu mágico caldeirão, e depois de certo tempo os homens saem vivos e renovados das águas, porém mudos.
[3] Pesquise e leia sobre as Imramma, jornadas de barco pelo mar.
[4] Na Canção de Amergin e em poemas de Taliesin fica claro que uma alma pode assumir diversas formas, pois na crença celta tudo que conhecemos e não conhecemos é vivo e tem consciência (em diferentes graus de complexidade, mas tem).
[5] Humildade deve ser entendida como saber o seu lugar, nem acima nem abaixo dos outros, mas no Seu lugar, em seu centro. É ter consciência de que não se está aqui por acaso, muitos vieram antes de você e muitos virão depois. O que você está fazendo para honrar os que vieram antes, seus antepassados? E o que está fazendo para preparar o caminho para os que virão depois, seus descendentes?

13 de outubro de 2012

Druidismo e Wicca: semelhanças e diferenças



Essa é uma questão recorrente entre as pessoas que estão começando a  estudar o Druidismo, e em diversas listas de discussão na internet esse tema costuma aparecer. Então, com a intenção de esclarecer um pouco sobre as semelhanças e diferenças que há entre Wicca e Druidismo criamos esse breve texto.


* Semelhanças:

- Ambas são tradições pagãs (de paganus, do latim, refere-se a uma pessoa "que vem do campo" ou "que mora no campo", tendo uma forma de vida e religiosidade ligada ao meio natural. Por mais que hoje a maioria de nós seja urbanus, pretendemos resgatar alguns valores dessa forma de vida ligada a natureza).

- Entendem a natureza como sagrada. A Terra é um sistema vivo, uma teia de ligações entre todos os seres e reverenciada como Mãe-Terra. Na Wicca é honrada por meio de diversas deusas telúricas (como Gaia, Démeter, Hathor, Inanna, entre outras), e no Druidismo a Terra é Erin, Danu, Aetegina e outras, dependendo da tribo celta.

- Reverenciam vários Deuses e Deusas.

- Acreditam na imortalidade da alma e no renascimento da mesma.

- Acreditam na existência de outros mundos, paralelos ou transcendentes ao mundo material.

- A mulher e o feminino apresentam funções e características tão importantes e sagradas quanto o homem e o masculino, mas em algumas tradições da Wicca o foco no feminino é mais acentuado.

- Celebram os festivais sazonais e observam as mudanças da lua.


* Diferenças:

- No Druidismo reverenciamos os Deuses e Deusas Celtas, de um (ou mais) foco (celtibérico, gaélico, bretão, galês...), enquanto que na Wicca costuma-se reverenciar Deuses de diversos panteões (grego, celta, egípcio, nórdico...).

- No Druidismo não há uma crença focada em uma Deusa Mãe e seu Consorte, como é na Wicca, e sim em vários Deuses e Deusas (Celtas), entre as quais há deusas que são Deusas-Mãe. Além disso, no Druidismo não há a crença de que “todas as deusas são uma deusa, e todos os deuses são um deus”. Cada divindade possui características, atributos, funções e preferências bem distintas (a exceção de divindades consideradas pan-célticas, com o mesmo ou semelhante nome e características, indicando serem uma única divindade adorada em diversas regiões, como Lugh/Lug/Lugus/Llew; Brighid/Bríde; Nuada/Nodens/Ludd; Manannan/Manawyddan...).

- Na mitologia celta os deuses não têm obrigatoriamente características solares e as deusas lunares. Há deuses associados a Terra, a agricultura, enquanto que há deusas associadas ao sol, a guerra, como Brighid, Áine e Morrighan. Os deuses e deusas celtas são complexos demais para serem enquadrados somente em algumas qualidades como fazem algumas pessoas com as divindades gregas, por exemplo, em que costumam-se classificar Afrodite, como deusa do amor e da beleza; Hades, deus da guerra e submundo; Poseidon, deus do mar, e por aí vai.

- Os festivais tradicionais celtas - Samhain, Imbolc, Beltane e La Lunasa - são celebrados por todos os grupos e indivíduos que seguem o Druidismo, mas nem todos celebram os solstícios e equinócios. Além disso, os ritos seguem uma liturgia diferenciada da Wicca. Litha, Ostara, Lammas, Mabon e Yule não são termos e expressões usadas por druidas, celtistas e RC's, já que são palavras oriundas do germânico e inglês antigo. No Druidismo não celebramos “esbats”, mas observamos a mudança da lua e suas influências, ficando sob a preferência de cada grupo ou indivíduo celebrar ou não suas fases (geralmente a cheia e a nova, que marcam o ápice e o início de um mês).

- Nos rituais de Druidismo e RC, geralmente, não se invocam os quadrantes ou os quatro elementos, como na Wicca. Dependendo do grupo ou pessoa, chama-se pelos 4 Ventos (ou 12 Ventos), pelas dádivas das direções (de acordo com o mito irlandês "Divisão das Terras de Tara"), chama-se as Três Famílias (Deuses, Ancestrais de sangue e Espíritos locais) ou os símbolos da Árvore, o Fogo e a Fonte (liturgia da ADF), procurando sempre um precedente ou base na mitologia, cultura e folclore Celta. Convidamos (e não “invocamos”), com um sentimento de amizade, hospitalidade e honra, nossos Ancestrais e os Deuses a nos acompanharem, protegerem e abençoarem durante e depois do rito.

- Não utilizamos o athame, a vassoura e outros instrumentos próprios do ocultismo. Aliás, os rituais e encantamentos druídicos são mais próximos da magia natural, espontânea, do que da magia cerimonial ou da "Alta Magia".

- Não misturamos divindades de culturas diferentes em um mesmo ritual, muito menos em um ritual que se proponha ser céltico. O que não quer dizer que seja proibido ou errado um druida ou druidesa, celtista ou RC sentir afinidade por um deus ou deusa de outra cultura, como Shiva, Deméter ou Ísis, e nem é errado ou proibido essa pessoa dedicar uma oferenda, prece ou ritual a outros deuses, mas é errado afirmar que essa prática é celta ou druídica.

- No Druidismo não há a crença ou culto na deusa tríplice Donzela-Mãe-Anciã. Existem deusas tríplices ou trinas (como Brighid, as Morriganas e as Matronas), e deuses (como Esus-Teutates-Taranis), mas, no caso das deusas, não são vistas em face de donzela, mãe e anciã. Geralmente as três deusas, que são irmãs ou aspectos da mesma deusa, possuem característica de "mãe" e mesmo suas faces em representações em tabuletas e estatuetas são comumente de mulheres jovens ou maduras, e não uma sendo jovem, outra madura e outra anciã.

- Os celtas não cultuavam uma Grande Deusa e seu consorte, Deus Sol, Cernunnos ou quem seja. Não há nenhum registro histórico e mitológico que comprove isso. Os celtas eram politeístas e reverenciavam várias Grandes Deusas e Deuses. Para uma tribo a sua "Grande Deusa" poderia ser Epona, para outra a Morrighan, assim como o "Grande Deus" poderia ser Lugh para um clã, Manannan Mac Lir para outro, ou Dagda para outro. Mas ainda assim, o culto não se centrava em um ou dois deuses apenas.


Wicca e Druidismo possuem aspectos em comum, mas há diferenças e particularidades que devem ser observadas e respeitadas. Não queremos aqui "demarcar fronteiras" entre duas religiões, ou promover discriminação de uma para outra. Longe disso! Respeitamos a Wicca, assim como as outras religiões que existem no mundo. Apenas não concordamos quando vemos pessoas afirmando erroneamente que Wicca e Druidismo são a mesma coisa, que a Grande Deusa e seu consorte eram cultuados pelos celtas, que os celtas vieram de "Atlântida" ou outra coisa parecida.
Respeitar as tradições culturais e históricas de um povo, seja ele celta, grego, egípcio, eslavo ou indígena brasileiro, é ser verdadeiro consigo mesmo e com os outros, além de ser uma atitude fundamental para o reconhecimento e valorização dessas culturas.
De qualquer maneira, reconhecemos os wiccanos como irmãos, pois honramos juntos a Terra e suas formas de vida, estamos juntos contra a discriminação e somos a favor da paz entre os povos, as religiões e todos os seres. Wicca e Druidismo apresentam formas diferentes de entender e se relacionar com o Sagrado, cada uma a sua maneira. E se um ou outro Caminho faz sentido para você e te faz bem, então, é isso que importa... Sua felicidade, seu bem-estar e seu sentimento de plenitude com o divino e o que lhe rodeia.

(Darona Ní Brighid - fundadora e membro do Nemeton Samaúma)

2 de outubro de 2012