20 de outubro de 2012

Os Ancestrais e o Outro Mundo



“Bem cedo na manhã do terceiro dia depois daquilo eles viram outra ilha, com uma paliçada de bronze no centro que dividia a ilha em duas, e viram grandes rebanhos de ovelhas por lá, um de ovelhas negras de um lado da cerca e outro de ovelhas brancas do outro lado. E viram um homem grande separando os rebanhos. Quando ele lançava uma ovelha branca sobre a cerca para o lado das ovelhas negras ela se tornava negra no ato. Quando ele lançava uma ovelha negra para o outro lado, ela logo se tornava branca.” (A Viagem de Mael Duin, tradução de Endovelicon).

A proximidade com o dia de finados no calendário civil e com o festival céltico Samhain[1], nos faz pensar inevitavelmente sobre os ancestrais, nossos antepassados, e para onde vão depois que morrem nessa vida. Bem, não tenho como responder a essa dúvida com tanta certeza, pois todos nós quando renascemos nesse mundo, mergulhamos nas águas sagradas do Caldeirão de Bran e saímos mudos, sem saber ou ter como dizer o que vimos e vivemos no “Outro Mundo”[2]. Porém, os celtas nos legaram alguns conhecimentos sobre a vida, a morte e o renascimento, e sobre nossa ligação com os antepassados. É um pouco sobre isso que conversaremos nesse encontro.

Para os Celtas antigos (e atuais), o Mar e as águas eram (são) os portais para Outros Mundos, assim como a profundidade da terra (cavernas, colinas “ocas”) e os lugares altos (montanhas, colinas). Contudo, o Mar é o local de excelência para a comunicação com Outros Mundos. No Mar do Oeste (onde o sol se põe, “morre”) é onde se acredita ser o local em que Deuses, seres feéricos e também as almas dos entes queridos habitam, e é composto por diversas ilhas (maravilhosas, paradisíacas, mas também assustadoras, perigosas). Seu guardião é Manannán Mac Lir, o bondoso e sábio rei das ondas, que guia as almas, e os homens corajosos[3], além do Mar. Além dele há também a Dama do Ramo de Prata, que na Imramm de Bran Mac Febal aparece como uma senhora bela e radiante portando um ramo prateado com maçãs douradas, e instiga Bran a viajar pelo mar e conhecer as Ilhas Abençoadas.

Nem todas as almas de homens e mulheres são dignas o bastante para descansarem nas ilhas bem-aventuradas. Algumas almas ficam perdidas entre os mundos ou se recusam a ir. Outras, por alguma lógica do Mistério, renascem tão logo morrem, e podem assumir um novo corpo humano, animal, vegetal, mineral ou outra forma de vida, nesse mundo que conhecemos ou em outro[4].
O trecho no início desse texto aborda simbolicamente a ideia de que a vida contém a semente da morte, e a morte carrega a promessa da vida. Quando nascemos nesse mundo, morremos no Outro. E quando morremos aqui, renascemos lá. A morte, definitiva, não existe de fato. A vida é um eterno ciclo de ir e vir, como as fases da lua, as estações do ano, o ritmo das marés, o percurso do sol, as ondas do mar... A eternidade existe e se manifesta nas transformações (trans = além, transcender; formações = formas, estruturas). A cobra troca de pele. A águia muda de penas e arranca as unhas velhas. Ambas se renovam, e renascem em cada mudança, em cada morte.

Nossos antepassados e pessoas queridas que fizeram a travessia pelo Mar do Oeste continuam vivas, e estão conectadas conosco pelo misterioso entrelaçar da Grande Teia. Os antigos estão em nós, seus descendentes, e nós estaremos em nossos filhos, sobrinhos e netos um dia. Manter acesa a memória e o amor pelos antepassados é fortalecer os laços com nosso passado e futuro, é guiar nossas vidas em honra, tradição e humildade[5], tal como uma chama na noite mais escura.


“Samhain, Samhain,
A noite cobre o céu.
Invoco os Ancestrais,
Vinde a nós, passai o véu!

Bem fino está o véu,
Eu vou cruzar o mar
Rumo à Porta do Tempo,
E aos que partiram vou cantar.

Samhain, Samhain,
Vimos aqui louvar.
E honrar nossas raízes
Enquanto a Roda girar.
Samhain, Samhain,
A Roda vai girar.
Aqueles que partiram
Neste canto vou lembrar!”

(Cântico de Samhain. Música de Lisa Thiel. Letra adaptada por Nemeton Lusitano).


(Texto escrito por Darona Ní Brighid e utilizado na roda de conversa de Druidismo em 20/10/2012, em Belém-PA).


(Foto do Encontro/Roda de Conversa sobre Druidismo realizado pelo Nemeton Samaúma em 20/10/12)




[1] Festival sagrado para celebrar o fim e início de um novo ano/ciclo e honrar os antepassados. Realizado entre os dias 29 de outubro e 02 de novembro.
[2] No Mabinogion (compêndio de mitos galeses), na batalha pelo resgate de Branwen, muitos guerreiros são mortos ou fatalmente feridos, Bran então mergulha seus guerreiros em seu mágico caldeirão, e depois de certo tempo os homens saem vivos e renovados das águas, porém mudos.
[3] Pesquise e leia sobre as Imramma, jornadas de barco pelo mar.
[4] Na Canção de Amergin e em poemas de Taliesin fica claro que uma alma pode assumir diversas formas, pois na crença celta tudo que conhecemos e não conhecemos é vivo e tem consciência (em diferentes graus de complexidade, mas tem).
[5] Humildade deve ser entendida como saber o seu lugar, nem acima nem abaixo dos outros, mas no Seu lugar, em seu centro. É ter consciência de que não se está aqui por acaso, muitos vieram antes de você e muitos virão depois. O que você está fazendo para honrar os que vieram antes, seus antepassados? E o que está fazendo para preparar o caminho para os que virão depois, seus descendentes?

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