“Bem cedo na manhã do terceiro dia
depois daquilo eles viram outra ilha, com uma paliçada de bronze no centro que
dividia a ilha em duas, e viram grandes rebanhos de ovelhas por lá, um de
ovelhas negras de um lado da cerca e outro de ovelhas brancas do outro lado. E
viram um homem grande separando os rebanhos. Quando ele lançava uma ovelha
branca sobre a cerca para o lado das ovelhas negras ela se tornava negra no
ato. Quando ele lançava uma ovelha negra para o outro lado, ela logo se tornava
branca.” (A Viagem de Mael Duin, tradução de Endovelicon).
A proximidade com o dia de finados no
calendário civil e com o festival céltico Samhain[1], nos faz
pensar inevitavelmente sobre os ancestrais, nossos antepassados, e para onde
vão depois que morrem nessa vida. Bem, não tenho como responder a essa dúvida
com tanta certeza, pois todos nós quando renascemos nesse mundo, mergulhamos
nas águas sagradas do Caldeirão de Bran e saímos mudos, sem saber ou ter
como dizer o que vimos e vivemos no “Outro Mundo”[2]. Porém,
os celtas nos legaram alguns conhecimentos sobre a vida, a morte e o
renascimento, e sobre nossa ligação com os antepassados. É um pouco sobre isso
que conversaremos nesse encontro.
Para os Celtas antigos (e atuais), o
Mar e as águas eram (são) os portais para Outros Mundos, assim como a
profundidade da terra (cavernas, colinas “ocas”) e os lugares altos (montanhas,
colinas). Contudo, o Mar é o local de excelência para a comunicação com Outros
Mundos. No Mar do Oeste (onde o sol se põe, “morre”) é onde se acredita ser o
local em que Deuses, seres feéricos e também as almas dos entes queridos habitam,
e é composto por diversas ilhas (maravilhosas, paradisíacas, mas também
assustadoras, perigosas). Seu guardião é Manannán Mac Lir, o bondoso e sábio
rei das ondas, que guia as almas, e os homens corajosos[3], além do
Mar. Além dele há também a Dama do Ramo de Prata, que na Imramm de Bran Mac
Febal aparece como uma senhora bela e radiante portando um ramo prateado com
maçãs douradas, e instiga Bran a viajar pelo mar e conhecer as Ilhas
Abençoadas.
Nem todas as almas de homens e mulheres
são dignas o bastante para descansarem nas ilhas bem-aventuradas. Algumas almas
ficam perdidas entre os mundos ou se recusam a ir. Outras, por alguma lógica do
Mistério, renascem tão logo morrem, e podem assumir um novo corpo humano,
animal, vegetal, mineral ou outra forma de vida, nesse mundo que conhecemos ou
em outro[4].
O trecho no início desse texto aborda simbolicamente
a ideia de que a vida contém a semente da morte, e a morte carrega a promessa
da vida. Quando nascemos nesse mundo, morremos no Outro. E quando morremos
aqui, renascemos lá. A morte, definitiva, não existe de fato. A vida é um
eterno ciclo de ir e vir, como as fases da lua, as estações do ano, o ritmo das
marés, o percurso do sol, as ondas do mar... A eternidade existe e se manifesta
nas transformações (trans = além, transcender; formações = formas, estruturas).
A cobra troca de pele. A águia muda de penas e arranca as unhas velhas. Ambas
se renovam, e renascem em cada mudança, em cada morte.
Nossos antepassados e pessoas queridas
que fizeram a travessia pelo Mar do Oeste continuam vivas, e estão conectadas
conosco pelo misterioso entrelaçar da Grande Teia. Os antigos estão em nós, seus
descendentes, e nós estaremos em nossos filhos, sobrinhos e netos um dia.
Manter acesa a memória e o amor pelos antepassados é fortalecer os laços com
nosso passado e futuro, é guiar nossas vidas em honra, tradição e humildade[5], tal
como uma chama na noite mais escura.
“Samhain,
Samhain,
A
noite cobre o céu.
Invoco
os Ancestrais,
Vinde
a nós, passai o véu!
Bem
fino está o véu,
Eu
vou cruzar o mar
Rumo
à Porta do Tempo,
E
aos que partiram vou cantar.
Samhain,
Samhain,
Vimos
aqui louvar.
E
honrar nossas raízes
Enquanto
a Roda girar.
Samhain,
Samhain,
A
Roda vai girar.
Aqueles
que partiram
Neste
canto vou lembrar!”
(Cântico
de Samhain. Música de Lisa Thiel. Letra adaptada por Nemeton Lusitano).
(Texto escrito por Darona Ní Brighid e utilizado na roda de conversa de Druidismo em 20/10/2012, em Belém-PA).
(Foto do Encontro/Roda de Conversa sobre Druidismo realizado pelo Nemeton Samaúma em 20/10/12)
[1] Festival sagrado para celebrar o fim
e início de um novo ano/ciclo e honrar os antepassados. Realizado entre os dias
29 de outubro e 02 de novembro.
[2] No Mabinogion (compêndio de mitos
galeses), na batalha pelo resgate de Branwen, muitos guerreiros são mortos ou
fatalmente feridos, Bran então mergulha seus guerreiros em seu mágico
caldeirão, e depois de certo tempo os homens saem vivos e renovados das águas,
porém mudos.
[3] Pesquise e leia sobre as Imramma,
jornadas de barco pelo mar.
[4] Na Canção de Amergin e em poemas de
Taliesin fica claro que uma alma pode assumir diversas formas, pois na crença
celta tudo que conhecemos e não conhecemos é vivo e tem consciência (em
diferentes graus de complexidade, mas tem).
[5] Humildade deve ser entendida como
saber o seu lugar, nem acima nem abaixo dos outros, mas no Seu lugar, em seu
centro. É ter consciência de que não se está aqui por acaso, muitos vieram
antes de você e muitos virão depois. O que você está fazendo para honrar os que
vieram antes, seus antepassados? E o que está fazendo para preparar o caminho
para os que virão depois, seus descendentes?
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