Aproveitando o período em que estamos, o Outono, segue esse texto sobre o festival de Equinócio de Outono.
“Vamos
aproveitar para brotar no outono,
Estar
no outono da vida,
Na
meia-idade,
Passar
férias de outono em algum lugar.
Enfim...
Precisamos outonear.”
(Marta
Felipe)
Diferente do que
geralmente acontece em outras regiões do Brasil ou do mundo, o Outono é uma
estação muito bem-vinda no norte brasileiro, e recebido com alegria, festas e
alívio. Alívio porque finalmente o calor intenso e o sol massacrante começam a
ceder o lugar para as chuvas, o céu nublado e um clima mais ameno.
Mesmo que não
tenhamos aquele cenário clássico dos filmes e pinturas, das árvores amareladas,
as folhas caídas formando um belo tapete no chão e o vento frio anunciando a
proximidade do inverno, ainda assim amamos essa época. Bem, pelo menos eu. Não
temos esse cenário, mas temos as chuvas serenas, que pouco a pouco se
intensificam, o céu nublado, que ainda assim não impede que a luminosidade e o
calor do sol nos aqueçam, e o friozinho gostoso que fica depois de uma
madrugada de chuva. Sem muito calor, mas também sem o dia inteiro de chuva, o
outono para nós representa o equilíbrio. É como se a natureza mostrasse-nos sua
face mais calma, mais serena e madura, e como se esse seu aspecto nos chamasse
para fazer um momento de pausa, reflexão e descanso. E de fato fazemos essa
pausa, o mês de setembro e principalmente o de outubro é o mês que mais tem
feriados no calendário paraense, por causa do Círio (festa popular católica em
honra a N. Sra. de Nazaré, padroeira do Pará, dos pescadores e considerada
senhora das águas). Por ser uma festa que mobiliza boa parte da população é
chamada de o “Natal Paraense”, e é tradição reunir a família em um almoço, cujo
principal prato é o pato no tucupi, na casa do parente mais velho, geralmente a
matriarca da família.
Essa festa
popular lembra um pouco o Dia de Ação de Graças, comemorado nos EUA em novembro
e no Canadá em outubro, e que, por sua vez, recorda os banquetes dos povos de
outrora da antiga Europa em comemoração a época da Colheita. Essas festas
coincidem com o período do Outono, que é para as populações antigas e agrárias
o momento da grande colheita e representa a fartura da Terra, a maturidade da
Natureza, o recolhimento e descanso depois de longo tempo de plantio e cuidado
com a terra, aspectos esses que se refletem nos seres humanos. O Outono é a
maturidade não apenas da natureza, mas também dos humanos (macro e
microcosmos). É um tempo de, sobretudo, agradecimento pela fartura da Terra e
pelas bênçãos alcançadas ao longo do ano.
O equinócio de
outono era largamente celebrado pelos povos antigos (e ainda o é hoje, mas
claro, não das mesmas formas). Na Anatólia ocorriam festas em honra a Cibele;
na Grécia e outras regiões eram realizados os ritos eleusianos ou os mistérios
de Elêusis, em honra a Deméter e Perséfone; em Roma era comemorado o festival
de Ceres, deusa dos grãos e da agricultura; na Lusitânia céltica (em especial
na região da Galícia) realizavam-se ritos para Nábia e também para Aetegina; na
Irlanda o equinócio de outono era a ampliação e finalização das festas de
Lúnasa, dedicados a Lugh e Tailtiu; na Escócia, o último feixe de grãos era
ceifado de formas ritualísticas e amarrado em uma figura de palha que seria
chamada de “Rainha da Colheita” e estaria repleta de poder fertilizador.
Na Irlanda há um
monumento neolítico, o Loughcrew (que tive a dádiva de conhecer em julho desse
ano) que existe desde 5000 anos antes de nossa era e é conhecido não só por sua
beleza (pois fica no cume de uma grande colina) e complexidade, mas também por
estar intimamente relacionado aos equinócios de primavera e outono.
Loughcrew,
Irlanda (foto de Mayra Faro)
Há um desenho,
um símbolo (dentre muitos outros) esculpido na pedra central de Loughcrew que
se assemelha a uma roda do sol, e lembra a roda de uma carruagem. Esse símbolo
aparece em várias pedras do interior desse monumento, mas os que estão na pedra
central, e há quatro desenhados ali, são particularmente especiais, pois nos
dias 23 de março e 23 de setembro eles são exatamente iluminados pelo sol no
instante em que ele nasce. Nesses dias equinociais a luz do sol ao entrar na
tumba forma um quadrado nessa pedra, iluminando desenhos específicos, que
infelizmente hoje não sabemos o significado que eles trazem, e à medida que o
sol vai subindo no céu, sua luz vai fazendo um percurso na pedra central, até
finalmente sumir.
Rodas do sol e
outros símbolos na pedra central de Loughcrew (foto de M. Faro).
Sol iluminando a
pedra central no equinócio da primavera, em março de 2005 (foto retirada do
site www.knowth.com).
Sol iluminando a
pedra central no equinócio de outono, setembro de 2011 (do site http://www.newgrange.com/loughcrew-sep11.htm).
Esses eventos
tão marcados em Loughcrew só podem nos confirmar uma coisa: que os equinócios
definitivamente tinham grande importância para os povos da Idade da Pedra na
Irlanda, e muito provavelmente também para os povos na Idade do Ferro, os
celtas, que entraram em contato com esses primeiros povos, influenciaram-nos e
com certeza foram influenciados por eles.
Em várias
regiões do mundo céltico, como a Escócia, Gales e a Cornualha, o último feixe da
colheita que era ceifado reunia em si um grande poder da Deusa Terra. Alex
Kondratiev, em The Apple Branch, descreve alguns costumes tradicionais
relacionados ao Outono ou a “Última Colheita”. Transcrevo aqui alguns trechos,
que apesar de longos, são muito interessantes sobre os ritos e festas outonais:
“Então o último feixe era pregado a uma figura, um boneco de milho, representando o espírito que era planejado a morar. Este era frequentemente um animal, normalmente um animal fortemente associado com a Deusa da Terra – a lebre, porque ela realmente poderia se esconder entre os grãos, era um animal favorito óbvio. Na Cornualha ocidental o último Feixe ou pescoço era chamado de penn-yar (o pescoço da galinha). Mas em Gales a transformação da Deusa em uma égua era um tema tão importante e bem conhecido que a figura feita do último feixe era chamada caseg fedi (colheita da égua). Quando a boneca era uma figura humana, ela sempre era a representação da Deusa-Terra, mesmo se como um agente da fertilidade ou da seca. Em partes da Escócia os dois aspectos eram muito claramente diferenciados: se a colheita era julgada como uma boa colheita, a figura era dita como sendo de uma mulher jovem (a Rainha da Colheita, a Deusa como um ser fértil e amigável), mas se a colheita tinha sido ruim, a boneca era chamada Cailleach (a velha infértil, hostil às necessidades humanas). A maioria das comunidades mantinham a figura por um ano inteiro, queimando-a ritualmente na conclusão da colheita seguinte, tão logo a nova boneca havia sido feita. Nesse meio tempo, ela seria guardada em um espaço significantemente relacionado com a terceira função: numa árvore (retornando parcialmente, para a Terra), em uma cozinha, na igreja (onde os instrumentos de colheita eram abençoados), ou entre o estoque de semente que era mantido para ser semeado na primavera seguinte, onde era esperado que fosse ensinar aos novos grãos o poder do crescimento, passando em alguns deles sua essência.”
(...)
“A conclusão da colheita do grão era celebrada com uma festa na comunidade, o ancestral das festas da colheita doméstica ‘que ainda subsiste em áreas rurais, normalmente como atos de agradecimento sob o auspício da paróquia. Na Cornualha isso era chamado de Goeldheys ou festa das pilhas de palha’. A boneca de milho originalmente presidia nestas festas como convidado de honra. Em várias comunidades as cenouras - porque elas eram juntadas neste tempo – caracterizavam proeminentes como um ritual de comida; e na Escócia sua aparência fálica era invocada em magia de fertilidade, conforme as mulheres as desenterravam com espadas (associadas com simbolismo vaginal) enquanto cantavam:
Torcan torrach, torcan torrach
Sonas curran corr orm!
Micheal mil a bhi dha’m chonuil
Bríde gheal dha’m chòmhnadh.
Piseach linn gach piseach,
Piseach dha mo bhroinn;
Piseach linn gach piseach,
Piseach dha mo chloinn!
Fértil fenda, fértil fenda
Que a boa fortuna das cenouras pontudas estejam sobre mim!
Bravo Michael [i.e. Lugh] vai me doar,
Brilhante Brigit irá me ajudar.
O aumento de uma geração seja cada aumento,
Aumento para meu útero, aumento de uma geração seja cada aumento, aumento para minhas crianças!”
(...)
“Depois do recolhimento da colheita o ano pode ser dito como vindo para seu próprio clabhsúr (encerramento), tanto em termos da relação da Tribo/Terra no ciclo agrícola quanto em termos do ciclo samos/giamos dentro da Terra. Com o equinócio a Escuridão novamente ganha o controle, a energia giamos fica ainda mais proeminente nos ritmos diários do mundo natural, e as energias da Tribo humana devem lutar para se realinharem com a mudança da ordem das coisas. O próprio ato de recolhimento, de se voltar para o interior, é a característica principal do giamos (como oposto à qualidade expansiva e mudança externa de samos), e uma vez as atividades de coleta e armazenamento da colheita tenha sido completada, a estação da Escuridão pode se estabelecer completamente, presenteando o mundo com um período necessário de inação, contemplação, e descanso”
Além desses
temas simbólicos, havia um outro muito presente em alguns costumes e mencionado
em mitos celtas, que é a disputa do rei do verão com o rei do inverno pela
união com a rainha da primavera ou a Deusa-Terra. Em outras palavras, era a
peleja entre o inverno e o verão pela primavera, que dependendo da estação, ou
do momento da Roda do Ano, um ou outro saía vencedor. Os equinócios são
conhecidos pelo equilíbrio (em termos de duração) do dia e da noite, e
simbolicamente, entre o verão e o inverno, mas passado o momento de equilíbrio
um ou outro ganhará mais duração e intensidade com o passar dos dias. No caso,
a partir do equinócio de outono, a noite (e o inverno) será mais longa do que o
dia. E a partir da primavera, ocorrerá o contrário. Claro, isso pensando no
contexto dos países célticos ou em lugares onde as quatro estações, de fato,
são definidas, o que não é o nosso caso (que moramos no norte do Brasil). Mas
era - e é - dessa forma que os celtas compreendiam e - o mais importante –
honravam a natureza e o desenrolar de seus ciclos.
Na região norte
a duração entre o dia e a noite não se altera ao longo do ano, mas é evidente a
mudança do clima. De março a setembro é o calor e o sol que reinam, é o período
que chamamos aqui de Verão Amazônico. E nos outros meses é a chuva e o tempo
quase sempre nublado que dominam, sendo, portanto, o Inverno Amazônico.
A batalha entre
o Rei Azevinho (inverno) e o Rei Carvalho (verão), disputando pela soberania na
natureza, ou entre Gwynn e Gwythyr, disputando pelo amor de Creudiladd, ou
ainda entre Bríde e Beira*, disputando pelo reinado e o amor do sempre jovem
Aengus (o Sol), encarnam um tema mítico muito significativo relacionado a
mudança das estações e ao ciclo anual (a Roda do Ano). Por essa razão acredito
que esse tema também deva estar presente em um rito de celebração de equinócio.
Pontuando o que escrevemos até aqui,
sugiro três aspectos que devem estar presentes, de alguma forma, em um rito de
Outono.
1.
Agradecimento à Mãe Terra pela colheita (ou seja, por todas as coisas boas
que te aconteceram ao longo do ano, pelos frutos, simbolicamente falando,
colhidos e pelos aprendizados adquiridos).
2.
Um banquete, tendo como “convidada de honra” a Rainha da Colheita, que pode
estar representada em uma boneca de palha (ou feita com raízes de patchouli,
muito encontrada em feiras de artesanato em Belém), e que no próximo outono
esta será queimada e uma nova deverá ser confeccionada ou adquirida
(representando o fim de uma colheita-ciclo e início de outra).
3.
A disputa entre o Inverno e o Verão, sendo que a vitória será do Inverno (é
interessante que esse mesmo tema também ocorra no equinócio da primavera, e
nesse caso, a vitória será do Verão). Duas pessoas podem representá-los e
fazerem uma dramatização dessa batalha. Se houver uma terceira pessoa,
preferivelmente do sexo feminino, ela pode representar a Deusa-Terra, a Soberania,
que “entra em cena” no ápice da batalha e presenteia o Inverno com uma “dádiva”
(pode ser uma espada, ou uma coroa de folhas secas ou típicas da época, um
cetro ou cajado, ou um simples toque, que simboliza a sua escolha), que o dará
força e o ajudará na vitória sobre o Verão. Para ficar com um aspecto mais
regionalista, as duas pessoas podem ser denominadas de o Sol e a Chuva, que
corresponderia ao Verão (Rei Carvalho, Gwythyr ou Bríde) e ao Inverno (Rei
Azevinho, Gwynn ou Cailleach), respectivamente, tendo em vista que Sol e Chuva
são atores marcantes em nossa região amazônica, e constantemente estão em
“dança de guerra” ao longo de todo o ano.
Bom, essas sugestões podem ser
obviamente adaptadas para cada contexto e realidade. Pode funcionar muito bem
em um grupo druídico ou pagão céltico, mas com algumas modificações pode ser
que também funcione em uma celebração individual. Aí vai depender de sua
vontade e criatividade. Esperamos que essas sugestões e esse texto tenham lhe
inspirado de alguma forma, e caso você utilize algumas ideias aqui expostas para
sua celebração de equinócio, depois conte como foi! No mais, desejamos um feliz Outono (ou
Primavera, para quem está na Roda Sul) para todos!
*
Mitologia escocesa. Deusas que disputam pela soberania e de certa forma pelo
amor de Aengus, o Sol. Para saber mais, leia “Wonder tales from scottish myths
and lengends” (Donald Alexander Mackenzie), disponível em sacred-texts.com .
Sobre
Loughcrew, acesse http://www.knowth.com/loughcrew-equinox-mar05.htm;
e também http://www.newgrange.com/loughcrew-sep11.htm.
(Mayra ní Brighid)